Produções Balaclava Noir

The Age of Divinity

Esta jornada poderia ser encarada como o início de uma estória, um relato ténue daquilo que se poderia apelidar de imaginação manifesta. É uma jornada acerca da nossa condição de seres imaginantes, entidades não governadas por normas da ciência, da razão ou da verdade, mas antes governadas pelo tributo dos sonhos e dos pesadelos na configuração de uma expressão do mundo. No conto de Jorge Luís Borges descreve-se um tempo no qual as criaturas que viviam nos espelhos, ao apoderar-se do espaço terreno que era pertença do ser humano, são novamente aprisionadas e condenadas eternamente a mimetizar e a refletir a imagem do mundo “real”. Nesta obra do escritor argentino, baseada no mito chinês do Imperador Amarelo e da fauna existente nos espelhos como universo alternativo, somos confrontados com a ideia de “seres” irrequietos – imagens desobedientes – que se transportaram para a nossa realidade para aí iniciarem a destruição e o caos. Dir-nos-á a história das crenças que, graças a um poderoso feitiço do Imperador Huang Di, os entes foram controlados e derrotados.

A estória que se deseja contar cresce da reflexão em torno da relação “real” ↔ “imaginário”, imagem e reflexo. Ambos os conceitos são considerados como momentos que se nos impõem e que, através da arte, se cruzam ou trocam de lugar, produzindo sombras, aterrorizando padrões de representação, razão ou verdade, fundindo ou deformando relações simbólicas que esperaríamos estáveis. Assim sendo, observe-se o artista como aquele que lança falsificações para a “realidade real” e também, vice-versa, aquele que aprisiona essa mesma “realidade” nas representações e nos objetos que cria. A noção de parergon, exposta por Jacques Derrida1 como o espaço entre – o dentro e fora simultâneos - institui interpretações de simultaneidade, ambiguidade, permeabilidade e contaminação. O artista enquanto pecador demiúrgico, ilusionista e falsificador, xamã e feiticeiro, é consciente da força das imagens que criou durante milénios (e de outras que renovou, substituiu ou raptou) e da sua eterna função em fazê-las coincidir com a imago da divindade. Na sua obra Hyperion oder Der Eremit in Griechenland (Hipérion ou o eremita da Grécia,17972), Hölderlin apresenta, num formato estruturado por cartas, a nostalgia relativamente aos dramas seculares exaltando a natureza divina, sublinhando um conjunto de forças invisíveis, conflitos, ideais de beleza e de esperança. A noção que temos ao ler algumas das suas passagens, noção essa perfeitamente ilustrada pela luta da independência grega, é a de que, agora, trata-se antes de saber falar com os deuses, estar verdadeiramente ao seu nível («O primeiro filho da beleza humana, divina, é a arte. Nela o homem divino rejuvenesce», Hipérion). O que significa que homem e deuses estão juntos, nenhum se suplanta ao outro, não existe desafio possível. Heidegger, intérprete de Hölderlin, afirma em jeito de epígrafe na sua obra completa3 «Wege – nicht Werke!», «caminhos – não obras!», intitulação que apresentará em torno de vários dos seus escritos, por exemplo Marcas do caminho (1935-1946) ou A caminho da linguagem (1950-1959). Na sua conferência Hölderlin e a essência da poesia (1936), Heidegger induz uma aproximação da poesia a uma compreensão quasi-instrumental, tendo na palavra poética uma espécie de excelência da palavra em si mesma, do rigor de sentido, a partir do qual a nomeação poética consagra um resvalamento do ordinário para o transfigurado, para o extraordinário (Paul Valéry acerca de Mallarmé afirmará mesmo que a poesia se veicula a um estado anterior à escrita e à própria crítica). Não poderemos, contudo, assegurar que o poeta ou o artista visual – como aqui pretendemos – domina a natureza apenas pelo facto de a nomear ou que a determina através de uma sua representação, mas que tal nomeação é uma escuta sensível a partir da subjetividade criativa, desembocando nos “caminhos da linguagem”, ou seja, nas múltiplas bifurcações de que nos fala Borges. Poder-se-ia também afirmar que em Borges se encontra aquilo que Paul Virilio salientou como a “inutilidade” dos mapas, das referências, da cartografia, diríamos por assim dizer, da representação. Algumas das linhas de Borges também perscrutam a crença utópica de Virilio na qual, num futuro possível poderíamos encarar esta possibilidade da “inutilidade”, de forma a afastarmo-nos da obsessão com a metafísica e com o virtual (virtual aqui entendido como algo que não se encontra aqui e agora), caminhando na senda de valorizar e testemunhar, antes, a realidade na sua imediaticidade. Ora, como se viu em autores como Kant, Heidegger ou Zizek, é ao homem impossível obter uma experiência direta dessa mesma realidade por existir sempre uma distância ínfima entre a nossa compreensão do mundo e a experiência de estar no mundo. Aquilo que a história de Borges ilustra (e que se pode reler a partir de Virilio) é que a distância entre a apreensão cognitiva da realidade (mundo) e a realidade ela mesma foi algo trabalhado pela modernidade e pela pós-modernidade como uma espécie de “desertificação do mundo” (por exemplo descrita por Zizek em Bem-vindo ao deserto do real)4. Passemos então através do espelho e, aí, encaremos o ponto de vista que não reflete, mas que deixa ver através. O que nos chegará primeiro enquanto criaturas que olham: o espelho ou aquilo que vemos nele refletido? Talvez como no conto de Borges, estes “entes-reflexos” possam agora reemergir do “ecrã-espelho” como verdadeiras presenças.

Assim sendo, e a partir da poesia como pretexto, a exposição THE AGE OF DIVINITY é uma leitura aberta que procura desapontar a esperança de um qualquer literalismo, e que solicitou a cada artista a apresentação de uma obra que envolvesse e que explorasse alguns dos devaneios descritos anteriormente.

Hugo Barata, Lisboa, novembro de 2012

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